Os Negócios Sociais e a Questão Amazônica

Uma bolsa de couro de pirarucu é vendida por R$ 5 mil na Oscar Freire. Por este couro o pescador na Amazônia recebe R$ 4 o quilo. Não é assim que manteremos a Floresta de pé. Remunerar a produção dos povos da Amazônia é a grande âncora da Floresta. Eles são os garantidores deste patrimônio nacional de trilhões de dólares

Muito se falou sobre a Amazônia nos últimos meses. Incêndios florestais, questionamentos oficiais de políticas ambientais e indígenas e o tema da soberania brasileira sobre a Floresta novamente sendo colocado em questão. Especialmente ao longo dos meses de agosto e setembro, quando a intensificação das queimadas gerou uma nuvem negra sobre o Sudeste, houve um movimento de tomada de consciência por parte das populações mais urbanizadas do Brasil, e do mundo todo, de que a Amazônia existe de fato, e está mais perto que imaginamos. E que seu equilíbrio, quando perturbado, traz consequências graves para o Brasil e para o mundo.

Esse episódio gerou comoção. Fomos todos expostos a fotos que sensibilizaram o mais incrédulo dos negacionistas acerca do drama ambiental que vive a região. As redes sociais entraram em polvorosa, com celebridades e autoridades nacionais e estrangeiras pedindo ações.

Mas esta fase passou. E chegou o tempo de avaliarmos a questão com a serenidade e a profundidade que merece.

Acreditamos que esta seja a hora de uma análise aprofundada dos temas relacionados à Amazônia e de uma proposta concreta de ação visando a solução de ao menos parte deles.

Uma visão equivocada acredita que a Amazônia é um espaço selvagem, de pouca presença e de pouca interação do homem com o espaço. Muito pelo contrário. Entender a presença humana na região, e como sua relação com a paisagem amazônica se processa é chave para pensarmos em soluções socioambientais duradouras para a região.

A diversidade da paisagem amazônica foi delineada ao longo do tempo também pela interação dinâmica do homem com as plantas, os animais e outros organismos daquele bioma. 

Um ator humano fundamental quando se pensa em Amazônia são os indígenas. A maioria dos grupos indígenas do Brasil vive na Amazônia. De acordo com os dados oficiais esta é uma população de mais de 300 mil indivíduos (IBGE, 2010). Diferentes grupos étnicos, com diferentes tempos de contato e diferentes formas de vulnerabilidade coexistem com a sociedade não-indígena no bioma Amazônico.

A população indígena vive, ou deveria viver, sob proteção das políticas públicas e de Estado que visam a proteção e preservação do seu modo de vida tradicional. Compete à sociedade civil exercer pressão sobre os poderes públicos para que as políticas indígenas sejam as mais adequadas; tanto do ponto de vista da formulação das mesmas quanto do ponto de vista da sua implantação e fiscalização. Houve muitos avanços mas os retrocessos possíveis são assustadores para esta população.

Outro grupo importante no contexto amazônico é o ribeirinho. População que habita o bioma em especial ao longo dos rios e igarapés. Originária de diversas regiões do nordeste brasileiro, herdeira das tradições luso-brasileiras, afro-brasileiras e indígenas. Ao longo do tempo sua interação com o espaço físico tornou-o um especialista no convívio com a Floresta e com a Planície Amazônica, com conhecimento profundo dos rios e dos recursos florestais dos quais seu modo de vida depende.

Ao longo dos séculos o ribeirinho desenvolveu a habilidade de transformar o seu conhecimento numa ferramenta de sobrevivência a partir da interação com a paisagem amazônica, seja por meio das culturas de subsistência seja através da comercialização de produtos extrativistas da região.

Compreender estes processos produtivos dos ribeirinhos, mas também suas demandas por serviços urbanos tais como educação, saúde e acesso a  produtos não produzidos localmente, é crucial para encaminhar soluções que garantam a qualidade de vida e a prosperidade destas populações nativas.    

E por que falamos das populações da Amazônia no contexto de uma crise ambiental como a recentemente verificada? Porque a crise ambiental não se soluciona sem se endereçar a crise social que existe no contexto.

É consenso entre cientistas e especialistas em Amazônia que a chave para se resolver a crise ambiental é manter a população nativa na região. É imprescindível conferir a ela condições dignas de viver uma vida sem pobreza, sem doenças curáveis e, assim, assegurar a elas o direito inato de explorar de forma sustentável a Floresta que é ao mesmo tempo seu habitat e modo de vida.

Do ponto de vista macro, se faz necessário criar um inventário dos ativos florestais, visando mecanismos de integração entre políticas ambientais  e de desenvolvimento econômico sustentável, assegurando a qualidade de vida às populações da região.

A manutenção do homem nativo na Amazônia, em condições prósperas e sustentáveis, passa pela percepção econômica de que a manutenção ecossistêmica do bioma é mais rentável do que a transformação do mesmo em um sistema de produção exógeno à região. As cadeias produtivas locais têm potencial de produtos de valor agregado muito mais alto do que a soja, por exemplo. Há mais de 50 espécies de abelhas nativas, produtos florestais não-madeireiros com potencialidades ainda não totalmente conhecida, uma diversidade de peixes, castanhas, essências, princípios ativos para a indústria farmacêutica e outros produtos que se mantidos e fortalecidos no bioma criam valores econômicos e sociais que ainda hoje não sabemos mensurar.

Mas a realidade da Amazônia está bem distante disso. Para além das queimadas, as questões sociais são prementes na região: baixo índice de acesso ao saneamento básico e de alfabetização, altos índices de desnutrição infantil e de gravidez infantil. É no bioma Amazônico onde se encontram os piores IDH-Municipais, as mais altas taxas de doenças tropicais, as mais baixas taxas de escolaridade e piores indicadores de qualidade da educação do Brasil. O acesso à medicina moderna é inexistente e as taxas de gravidez em crianças, de 10 a 14 anos, permanecem inalterada há décadas, enquanto no resto do país são decrescentes. 

Dos 772 municípios da Amazônia, em 59% deles houve redução do Índice de Progresso Social (IPS) quando comparados dados de 2014 a 2018. Em apenas 30% dos municípios houve aumento do Índice, e em 11% dos municípios o IPS manteve-se estável. A pobreza não só se mantém mas infelizmente piora.

Questões relacionadas à logística e às dificuldades de processamento de produtos na região criaram, ao longo dos séculos, formas de relações sociais perversas. O antropólogo Marcio Meira ao estudar as populações indígenas do noroeste amazônico define, em seu livro “A Persistência do Aviamento” (2009),  o aviamento como um sistema de trocas no qual os "compradores" externos adiantam mercadorias, como café e açúcar, aos "vendedores" indígenas e ribeirinhos que as pagam com produtos extrativistas como por exemplo borracha, peixes e juta. 

Este sistema cria uma relação de dívida e estrutura uma forma de organização social na qual os produtores locais, sejam eles indígenas ou ribeirinhos, passam a dever aos "patrões". É o sistema que se convencionou chamar de “escravidão por dívida” em outras regiões do Brasil. E o aviamento é, entre outros fatores, uma importante causa da persistência da pobreza na região.

Como então, para além das políticas públicas, desde sempre necessárias, fortalecer essa percepção de valor nas cadeias produtivas originárias e driblar práticas centenárias que condenam gerações de mulheres e homens da região à miséria?

Há uma paralelo interessante num país muito distante da Amazônia. E essa história começou há mais de 40 anos.

Muhammad Yunus, economista de Bangladesh, um dos países de pior IDH, ensinou ao mundo que o crédito tem poder transformacional nas vidas de pequenos empreendedores pobres. 

Yunus verificou que a maior parte do valor que era produzido pelos produtores locais em Bangladesh acabava nos bolsos de agiotas que cobravam juros extorsivos de pessoas que lutavam em desespero pela sua sobrevivência e para prover para seus entes mais próximos.

Ele entendeu que entregar crédito em condições justas, mas também assistência técnica àqueles empreendedores explorados pelos oportunistas de plantão daria a eles a chave para empreender suas próprias histórias de vida.

A capacitação destes empreendedores conferiu a eles mais robustez nas suas estruturas de produção. Montaram-se redes logísticas e de processamento dos produtos, usando a solidariedade entre as pessoas como ferramenta poderosa na transformação de estruturas de exploração em estruturas de melhora das condições de vida de forma sustentável.

Esta é a história da criação do Grameen Bank. Banco dedicado a conceder crédito aos mais pobres dentre os pobres de uma sociedade empobrecida como a de Bangladesh. Essa lógica possibilitou formas sustentáveis de saída da pobreza. Em 2006 o Grameen Bank e o Professor Muhammad Yunus foram agraciados com o Prêmio Nobel da Paz.

E continua sendo escrita a história dos negócios sociais. Empreendimentos que se utilizam das importantes ferramentas do universo dos negócios para resolver problemas sociais de forma sustentável e replicável ao longo do tempo. 

Voltando à realidade amazônica, o aviamento acima mencionado, em conjunto com a pouca efetividade de políticas públicas que visem o combate sustentável à pobreza, desembocou na crise social com a qual nos deparamos atualmente e que, infelizmente, não tem o mesmo nível de projeção da crise ambiental. E o drama é que ambas não podem ser dissociadas. 

Muito do valor gerado pelas suas iniciativas econômicas dos produtos locais da Amazônia acabam parando no bolso dos intermediários. Uma bolsa feita com couro de pirarucu, peixe típico da região, pode ser vendida por R$ 5 mil em lojas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Enquanto o produtor local recebe pouco menos de R$ 5 pelo quilo do pescado na região. 

A cadeia de valor do pirarucu (Arapaima gigas) manejado por comunidades de unidades de conservação e de terras indígenas é um bom exemplo de como a desigualdade nas relações de troca empobrece as populações locais. O preço deste produto, dada a fragilidade das políticas públicas e ação dos aviadores e compradores locais, passou de R$7,12 por quilo em 2012 para R$3,78 por quilo em 2017 (preços deflacionados). No caso da pele do pirarucu o preço pago ao longo da cadeia parte de R$50 a 80 para o pescador e chega no beneficiamento a R$610,00 a R$850,00. O ganho acontece ao longo da cadeia, e o pescador fica com os menores valores.

Fica claro que, assim como os agiotas de Bangladesh, os atravessadores e suas práticas de aviamento na Amazônia acabam capturando uma parte significativa, e não justa, do valor criado localmente.

Assim como Yunus ensinou com o exemplo de Bangladesh, é necessário criar acesso a condições justas de financiamento para a criação de estruturas produtivas que sejam justas e eficientes do ponto de vista socioambiental na Amazônia.

É necessário aumentar o poder de barganha dos produtores locais por meio do fortalecimento das associações e de suas relações comerciais. É necessário convidar as grandes redes varejistas, indústrias de cosméticos e farmacêutica, além das marcas de consumo de luxo, para oferecerem produtos de consumo consciente tão demandados pelos seus clientes, firmando contratos de compra de produtos responsáveis da Amazônia diretamente com as associações produtoras, valorizando, assim, os povos e o bioma Amazônico.

É necessário trazermos inteligência financeira e do mercado de capitais para que, de posse destes contratos de fornecimento de longo prazo, possamos estruturar operações no mercado de capitais para levantar recursos junto a investidores dispostos a financiar estas rotas comerciais justas. 

Nossa hipótese é que, desta forma, faríamos fluir recursos para as localidades transformando a vida das pessoas e conservando o ecossistema. Que os negócios sociais sejam uma forma de empreender a sua verdadeira mudança de vida. Esse negócios sociais gerariam recursos não apenas para capacitar suas estruturas produtivas, mas também para criar equipamentos comunitários que endereçassem os diversos problemas sociais que estas localidades enfrentam, mantendo os modos de vida na floresta

Fazemos aqui um convite. Um convite para que governos, universidades, empresas, investidores, cientistas, consumidores e sociedade em geral se unam a este esforço de empreender a transformação da realidade amazônica por meio do protagonismo dos atores locais. Acreditamos que empreender a melhora das condições de vida das populações amazônicas é a chave para uma Amazônia viva e próspera. 

A Amazônia é um legado precioso e a sua conservação depende da eliminação da pobreza, do fortalecimento das suas populações locais e da preservação dos seus modos de vida tradicionais.

O Professor Yunus nos presenteou com um exemplo inspirador de que isto é possível.

Todos nós podemos, de alguma maneira, nos engajar neste grande projeto de transformação da Amazônia. 

Vamos começar!

Luciano Gurgel, economista, é Diretor de Investimentos da Yunus Negócios Sociais.

Tatiana Schor, Secretária Executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Amazonas. É professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas.